13 abril 2012

"Menina nua" no Porto

"Menina nua"

Conheço esta estátua da "Menina nua" aqui no Porto.

Quando perguntava aos mais velhos quem era, diziam-me simplesmente que era a estátua da "Menina nua", mas ninguém me dizia quem era ou outros pormenores. Curiosamente todo o "tripeiro", respeitava e respeita a estátua, e todo o estrangeiro a fotografava. Só agora, sei todo o seu historial… não altero uma virgula ao texto que recebi e que muito agradeço.

Mais vale tarde que nunca.

 

 

A "Menina nua"

 

DESCONHECIA A HISTÓRIA DESTA FAMOSA ESTÁTUA !!!

 

 

A "Menina nua"


Uma estátua que todo o Porto conhece...

Chamava-se, Aurélia Magalhães Monteiro, e era conhecida por Lela, Lelinha ou pela «Ceguinha do 9» - para a eternidade ficará sempre a ser a «Menina Nua» da Av. dos Aliados, ou ainda uma estátua que toda a cidade conhece e aprecia.

Nasceu no dia 4 de Dezembro de 1910, na freguesia do Bonfim, e pouco tempo antes de falecer, dizia-me «que tinha sido uma das mulheres mais apreciadas e cobiçadas do seu tempo...».

Vivia no rés-do-chão do Bloco 9, do Bairro da Pasteleira, numa casa simples e humilde com flores a enfeitarem a entrada e a sala de jantar.

Um dia convidou-me a entrar e contou-me um pouco da história da «Menina Nua»: 

- «Tinha 21 anos quando fiz de modelo para o Henrique Moreira, o mestre que fez a estátua; mais tarde colocaram-me na Av. dos Aliados - que belos anos aqueles! Estive duas semanas a «posar» e ainda hoje recordo com alegria e saudade aqueles momentos de trabalho, pois posso morrer amanhã que todos ficarão a saber quem era a Lela... Além disso, nessa altura, dava-me bem com os artistas, era bonita e eles convidavam-me, andava por toda a parte, ganhei uns «cobres» com o Henrique Moreira, mas hoje... resta-me a consolação de estar ali, de costas voltadas para o Almeida Garrett e de frente para o D. Pedro IV. Perguntei-lhe nessa altura, se não tinham existido certos problemas com a estátua, a sua nudez, por exemplo: proibições, censuras?
Ela respondeu-me - «bem, sabe que naquela época, havia certos sectores que se opunham claramente e até ficaram escandalizados com a «Menina Nua»; nós éramos muito tacanhos, e veja bem que há 50 anos, a ideias eram realmente diferentes, havia o Salazar, a Pide e o povo era mais fechado, mais religioso - felizmente o mestre Henrique Moreira conseguiu «levar a água ao seu moinho», e lá fiquei de pedra e nua, assim como Deus me botou ao Mundo... (Sorriu de imediato, mostrando ainda réstias de um rosto bonito e de uma boca fina, onde rareavam já alguns dentes, vítimas do peso dos anos e das canseiras e desgraças da vida).

... Além disso, imagine uma «moçoila» no tempo «da outra senhora», a expor-se toda nua perante uns homens de tela e pincéis ou bocados de pedra, bem... era quase como ser comunista ou mulher da vida...

Fez-se uma pausa para mandar-mos umas «bocas» contra o sistema do antigamente e prossegui nessa altura, perguntando-lhe: 


- Quando e onde tinha começado a ser modelo? Antes de me responder, fica um pouco pensativa, levanta-se e encaminha-se para o seu quarto, vasculha dentro do guarda-vestidos e traz-me um amontoado de papéis e fotografias 

- Vá, veja lá tudo isto, diz-me: (anotei visualmente uma série de fotografias, pequenas referências, recordações e memórias da «Menina Nua»): «... De qualquer modo e se a memória não me falha, comecei com o mestre Teixeira Lopes, na figura-modelo da rainha D. Amélia, esta estátua encontra-se actualmente no Museu com o mesmo nome, em Vila Nova de Gaia. Nessa época, tinha muita vergonha - era uma «moçoila» com 18 anos, bem feita e bonita, a minha mãe tinha falecido e fiquei mais tarde com uma madrasta, de quem por acaso não gostava nada, por isso mudei-me para o Bonfim, para casa da minha santa avó. Que tempos... Nessa altura, iniciei-me como modelo nas Belas Artes do Porto e lentamente fui-me habituando, até que fiquei mais descarada... (Levantou a cabeça, e numa reflexão interior com risos de vaidade e inconformismo), continuou:... Ah, nesse tempo, punha a cabeça dos rapazes em fogo, era bonita e não havia ninguém que não me conhecesse como a «Menina Nua». Depois passei alguns anos como modelo, andei pelo Norte, pelo Sul e até a Lourenço Marques (hoje Maputo) eu fui: fiz de modelo para vários mestres, entre eles Acácio Lino, Joaquim Lopes, Dórdio Gomes, Sousa Caldas, Augusto Gomes, Camarinha e os consagrados, Henrique Moreira e Teixeira Lopes. Além da «Menina Nua», estou no Buçaco, no Cinema Rivoli, em Lisboa e em Moçambique... e hoje? como vê aqui estou desde os 43 anos cega, uma vida difícil de adaptação, um mundo escuro, negro. E mais negro se tornou, aquando da morte do meu marido, fiquei completamente só.
Hoje, passados alguns anos, tenho um casal a viver comigo, sempre me ajudam a pagar a renda e a «fazer-me» um pouco de companhia. Tenho umas ajudas do Centro de Dia da Terceira Idade, ligado ao Centro Social cá do bairro, onde vou almoçar e lanchar, enfim, sempre ajuda a passar o tempo e a velhice. Mas o que eu, mais desejava na vida, além de mais dinheiro para viver, era dos meus ricos olhos... (algumas lágrimas correram-lhe pelas faces, enquanto se preparava para ir almoçar ao Centro...) Despedi-me dela, tentando consolá-la com frases de carinho e amizade, mas... a vida é um cão que não conhece o dono; ela despediu-se (nessa altura), com um bom dia, entrecortado com um sorriso morgaiato, misto de Ribeira, Bonfim e Pasteleira...

Aurélia Magalhães Monteiro, a Lela, Lelinha, ou a «Ceguinha do 9», faleceu no dia 2 de Junho de 1992, com 82 anos de idade; no entanto a «Menina Nua», continua viva, fixa e eterna, ali na Av. dos Aliados envolta nos nevoeiros citadinos, perpétua e ardente, nos dramas e vitórias deste povo.

Do livro Pasteleira City, de Raul Simões Pinto – edições pé de cabra – Fevereiro de 1994

1 comentário:

André Silva disse...

De repente, recuei quase 30 anos e não consegui evitar que os meus olhos se enchessem de lágrimas. Tal como a Lela, frequentei o Centro com assiduidade. Não como utente, simplesmente como visitante ocasional, dado os meus avós serem, eles sim, utentes dessa instituição. Durante muitas tardes, principalmente nas férias de Verão, ficava largas horas no Centro a jogar damas com o meu falecido avô, e a ouvir as histórias que emolduram as vidas dos que já partiram e as memórias dos que cá ficam. Uma das histórias mais emblemáticas que se contava vezes sem conta no Centro era exactamente esta, pela voz da minha avó, amiga da modelo, e quem mais do que a própria Lela para corroborar e apimentar com detalhes? Lembro-me do toque aveludado das suas mãos, as que me "viam" na minha cara de menino, e dos beijos que me plantou tantas vezes nas faces. Tanta saudade, tanta saudade. Um bem haja pela memória que conseguiu desencantar com este texto, Bruno